PERGUNTE E RESPONDEREMOS
019 – julho 1959
Quem
há de esmagar a cabeça da serpente, Ela ou Ele?
HUMBERTO (Belo
Horizonte) :
O bom amigo lamenta que o texto bíblico da Vulgata latina em
Gên
3,15 dê a ler: "Ipsa conteret caput tuum. —
Ela
há de te esmagar a cabeça", quando o original hebraico apresenta um
pronome masculino: Ele há de te esmagar..." ; o hebraico, portanto, refere-se
aqui ao rebento ou à descendência da mulher, não à mulher ou a Maria SSma. Não
obstante, a Igreja conserva o pronome feminino do texto da Vulgata e o ilustra
por meio de estátuas da Virgem a esmagar a serpente! Também é questionada a
autenticidade do texto de Mt
16,17-19 sobre o primado de Pedro.
1 — Para julgar devidamente
o problema, fixemos ràpidamente o sentido de Gên 3,15.
Após a aliança
pecaminosa de Eva com a serpente no paraíso, o Senhor prometeu desfazer o
pacto, estabelecendo inimizade entre a serpente e sua linhagem, de um lado ; a
mulher e sua descendência, do outro lado.
Quem são
propriamente esses antagonistas ?
No contexto de Gên 3, a serpente significa evidentemente o demônio. Por
conseguinte, a linhagem da serpente vem a ser todos aqueles — homens e anjos
maus — que se filiam ao Maligno, deixando-se influenciar por ele, para
constituir o que S. Agostinho chama "a Cidade do Diabo".
A esse partido se opõem a mulher e sua linhagem... A mulher (determinada por
artigo, no texto hebraico), se se considera o contexto de Gên 3, é Eva, pois
sòmente esta fazia parte da cena do paraíso (em todo o cap. 3 do Gên, a mulher
é sempre Eva ; cf. w. 1.2.4.6.12. 13.16.17.20.21) ; Eva, por sua penitência,
seria, para o futuro, antagonista do demônio. A posteridade da mulher inimiga
do Maligno são consequentemente todos os homens bons, os que repelem as
influências do demônio, constituindo "a Cidade de Deus".
É esta a interpretação literal do texto. Ulterior reflexão, porém, leva a
descobrir no mesmo um sentido ainda mais profundo : nem Eva nem os homens bons
que dela descendem, realizaram e realizam, sem restrição, inimizade com o
demônio, pois tanto a primeira mulher como o comum dos seus descendentes
pecaram e pecam, apesar de suas intenções virtuosas. Apenas um homem e uma
mulher foram sempre alheios ao Maligno, pois jamais conheceram a mancha de
pecado, nem original nem atual: Cristo e Maria SSma. Em vista disto,
conclui-se: no sentido literal imediato,
o vaticínio de Gên 3,15 se refere a Eva e a todos os justos; no sentido pleno, porém,
alude a Cristo e sua Mãe SSma. A profecia se cumpriu por excelência no Redentor
e em Maria; ela se cumpre, em sentido menos perfeito, em Eva e em todos os
homens bons, os quais sustentaram e sustentam a luta contra o Maligno, em
virtude da pugna vitoriosa que Cristo e Maria sustentaram.
Os tradutores antigos do texto hebraico enveredaram por mais de uma
interpretação: assim o texto grego dos LXX traz o pronome autós, masculino, em vez
de autó
(neutro que corresponderia a sperma, descendência);
donde se vê que os tradutores gregos apontavam diretamente um varão, o
Messias, como Esmagador da serpente. A tradução latina anterior a S. Jerônimo e
o próprio S. Jerônimo (+420) em sua obra "Quaestiones hebraicae"
usaram o pronome masculino ipse,
segundo a praxe dos LXX; em numerosos manuscritos da Vulgata latina, porém,
entrou a forma feminina ipsa,
que prevaleceu, insinuando a pessoa de Maria SSma.
Esta última tradução é inadequada, mesmo errada, do ponto de vista filológico.
Não contém, porém, erro teológico, podendo até ser explicada plausivelmente à
luz da Teologia: de fato Maria, junto com seu Divino Filho (embora
subordinadamente a Este), esmagou grandiosamente a cabeça da serpente,
preservada como foi do pecado original (haja vista a explanação do sentido
literal imediato e do sentido pleno acima proposta). Por isto é que o texto da
Vulgata foi sendo transmitido tal como o confeccionou o tradutor; a Santa
Igreja o respeitou, pois não contém heresia; nunca, porém, definiu Ser essa
tradução a expressão autêntica do teor hebraico. Nota-se até que as traduções
católicas modernas da Bíblia fazem ressaltar o pronome masculino Ele em Gên 3,15.
Compreende-se outrossim que os artistas latinos, lendo o Gênesis na tradução da
Vulgata, o tenham ilustrado, representando a Virgem a esmagar a cabeça da
serpente. A Sta. Igreja também aceitou esta expressão da fé cristã, pois ela é
genuína, contanto que não se afirme ser a expressão da letra de Gên 3,15. É
esta a razão de ser da praxe atual dos católicos.
Acontece, porém, que, consciente de que a tradução da Vulgata, embora não
contenha heresia, é afetada de imperfeições filológicas, a Igreja pensa em
publicar nova tradução latina da Bíblia Sagrada, tradução que corresponda
fielmente ao texto original. Já saiu mesmo nova tradução latina do Saltério
-ordenada por Pio XII.
Como se vê, a questão não versa em torno de erro teológico, mas em torno de uma
falha linguística, que os antigos tradutores cometeram de boa fé e que os
modernos vão removendo com clareza.
2 — Quanto à autenticidade e ao sentido de Mt 16,17-19 (primado de Pedro), veja
"P.R." 13/1959, qu. 2. Como reconhecem os críticos em geral, essa
passagem não falta em manuscrito algum dos Evangelhos nem nas traduções e
citações do texto sagrado feitas na antiguidade. Se o texto tivesse sido interpolado,
haveria sido interpolado, sim, nos três Evangelhos sinóticos, e no mesmo
contexto, quando na verdade ele só aparece em S. Mateus (cf. Mc 8,28-39 e Lc
9,20-27) ; o silêncio, pois, de Mc e Lc é sinal da autenticidade do texto.
Ademais, dado o apego dos antigos cristãos à tradição, teria sido impossível
dar autoridade a um texto que houvesse sido tardiamente inserido nas
Escrituras.
Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)